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Sobre pedrogonzaga

Músico, professor, tradutor e azarão da escrita.

A arte humana

Três pôneis chegaram cedo demais aos prados da Arcádia. Agitados, coiceavam o vazio, relinchando de impaciência: as noites agora prometiam muitas mil bravuras sexuais. Finalmente uma geração livre do lirismo, da galanteria, dos rituais sofisticados.

Ao alvorecer, no entanto, enfastiados e ressentidos, já haviam descoberto a arte humana de transformar qualquer alegria numa sudorosa rotina de bicicleta ergométrica.

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O homem na caverna e os selvagens

Em busca de paz, um homem deixa o mundo e se interna no úmido silêncio de uma caverna. Aos poucos, abandona os pensamentos práticos, a preocupação com as despesas inevitáveis que o tinham feito dedicar trinta anos da vida a um trabalho estúpido. Logo esquece as dores do corpo e não muito depois as dores da alma. E assim os anos passam. Sente que não encontrou ainda a verdade, mas que está livre das mentiras. É quando resolve voltar à luz. Sem que houvesse percebido, formara-se em suas costas e ventre uma dura carapaça, suas unhas haviam se transformado em cristais afiados, e uma barba, em forma de cerdas, agora lhe cobre a face. Seus olhos, adaptados à escuridão, tinham se depurado a ponto de se tornarem duas pedras negras.
O que o homem não sabe é que nesse meio tempo duas hordas, tão mais primitiva que os homens que deixara, vêm disputando a divisão da Terra palmo a palmo. Ao sair da caverna, vê-se no coração do mais cruento combate. Impressionados com sua aparência, os bárbaros fazem uma rápida trégua. Todos se ajoelham. Alguns gritam palavras de fé em suas línguas de feras. Aturdido, o homem dá meia volta para retornar à escuridão. Nisso, sente uma lança perpassar-lhe a carne. Tenta correr, mas outros golpes o atingem. Pedras, flechas, fogo. Enquanto agoniza, vê a guerra recomeçar. Não, não era ele o esperado deus-tatu.

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As formigas e a aranha

Há solidões que vêm para bem.

Cinco formigas marcham barulhentas sobre a relva da mata. Divisam a folha que lhes cabe levar para casa com uma energia e disposição intoleráveis para a aranha que as observa de sua teia, lenta e solitária artesã. Amante do silêncio, tem para si que a perfeição é uma característica individual e não coletiva. A algazarra que fazem as operárias atrapalha sua concentração. À chegada de outro destacamento, aumenta o clima de terrível camaradagem no solo, e todas passam a entoar canções de trabalho, famosas por seu caráter chulo e pragmático. Ensimesmada, a aranha olha para a trama de fios translúcidos, de excelente proporção e geometria, e nisso encontra consolo. Ao menos não tinha de ser como a cigarra, obrigada a produzir uma arte aparentemente acessível às mais brutais das criaturas.

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O tubarão e o artista moderno

Muito se diz sobre o mundo da superfície, pouco sobre o submarino.
Um tubarão branco, inflado pelo orgulho de suas presas, assim gostava de se gabar:

– Arranco braços, pernas, caudas e cabeças com uma só dentada.

Costumava matar menos por fome do que por vontade de mostrar seu poder. Nadava tão cheio de si, a boca escancarada, que se esquecera de que não podia confiar em seus olhos turvos e inúteis. Senão tarde demais, encontrou-se preso entre barras de ferro.

Por um tempo recebeu comida regularmente, partida em pedaços. Foi sua primeira morte. Hoje segue em estado de suspensão, visível através das paredes de um estranho aquário, parte involuntária da obra de um artista moderno que vê em seus dentes o símbolo da fraqueza de nossa condição animal.

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Os bezerros e a vaca

Três bezerros recém-desmamados se reúnem no pasto para lutar por um mundo mais justo, onde todos tenham acesso ao leite diário. Agremiados, buscam, sem êxito, o apoio do boi e do burro, dos patos e dos porcos.

A mugir, ocupam o tambo, a fim de protestar contra a ordenha da vaca. Esperam pelo dono dos campos, que não aparece.

Sentindo os úberes inchados, a mãe os oferece aos bezerros.

Após breve hesitação, eles os abocanham, e logo estão a dormir satisfeitos.

Esta fábula vai para os que mugem pelos outros que são eles mesmos.

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Os sapos e o pescador

Fácil é rir diante das armas erradas.Um pescador distraído não sente seu barco aproximar-se da margem do rio, imerso estava em pensamentos de ontem. Ao lançar o anzol, espera, sem sucesso, uma longa hora. De súbito as águas se agitam: não são peixes, apenas sapos que coaxam a plenos pulmões. Parecem gargalhar. 

E gargalham com suas bocarras sem dentes.

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A coruja e os morcegos

Do alto de um campanário, uma coruja branca acompanha o movimento dos morcegos, o modo como, cegos, se aboletam antes de seus voos noturnos. O agito de ratos a irrita, os agudos guinchos, a coletiva sujeira.-Melhor estar sozinha – pia para si mesma, altiva, hierática, imóvel.

Esta fábula foi escrita para os que não percebem que a solidão é a mais escura das noites.

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A fábula dos dois tigres

A ninhada de dois tigres, recebida na calmaria da floresta, trouxe alegria aos pais já velhos e conformados em não gerar descendentes. Por nascerem tardios, os dois felinos foram criados com extrema liberalidade, livres também de quaisquer perigos, protegidos pela fama de seus antecessores.À hora dos estudos, decidiram viajar para terras desconhecidas. Mais certo seria dizer que não lhes agradava o aspecto conservador dos mestres, aferrados a seu militarismo de garras e de presas.

Seus couros hoje jazem, tal par perfeito e paralelo, suspensos na parede amadeirada de um rico escritório oriental. Diz o caçador que ambos se entregaram pacíficamente à morte, incapazes de acreditar que ele atiraria.
Esta fábula lembra que o mundo não é a floresta familiar.

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A pantera poliglota

A maior ferocidade é sempre aparente.Em um reino de baixa alfabetização, a pantera aprendera a ler e escrever ainda filhote, embora isso mais bem lhe tenha trazido dissabores do que delícias. Sua aparência fez com que a expulsassem de bibliotecas, livrarias e colóquios.Assim, por muitas terras pervagou. Anos mais tarde foi presa, puseram-na em um zoológico tropical. Rapidamente aprendeu a nova língua, com suas letras macias e suas vogais abertas.

O que nunca chegou a entender foram os concursos anuais a que a levavam, em que também chamavam as fêmeas humanas como fossem de sua espécie.

Anos depois, em um dia de desfile, por um descuido do guardador, evadiu-se.

O paradeiro da pantera pareceu interessar menos que o das panteras.

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O despertar do Senhor

Os homens há muito sabiam que Deus estava dormindo. Prova disso era a música obscena que, destemidos e impunes, espalhavam pelos campos do Senhor. Besuntados pela audácia, racharam as dez pedras, engendraram um sem par de bezerros de ouro, edificaram feéricas torres. Mas um dia os céus tremeram. Era Deus, que ainda dormindo, resmungava. Crentes em um iminente despertar, sabedores de que novilhas baixando até o chão e libações de cinquenta dinheiros não haveriam de Lhe aplacar a fúria, apelaram a um criativo e a sua inédita sugestão: lançar um revival, dos velhos profetas e do único messias, completamente repaginados para incluir a diversidade.

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